Voz e Corpo
A Prática Coral na
Educação Básica: uma abordagem transdiciplinar em prol do desenvolvimento
humano
Um
breve panorama da Prática Coral no Brasil
A
facilidade ao acesso, o baixo custo em sua operacionalidade, seu alcance á
vários meios sociais, culturais e econômicos, colocaram o canto coletivo num
patamar de ‘prática democrática’. Corroborando esta ideia, toma-se como exemplo
o educador musical húngaro, Kodály, que ao final de longas pesquisas acerca da música
folclórica em busca da identidade nacional, deu ênfase ao canto coral, em
implantação desse repertório e para instituir a música nas escolas de educação
básica, com o propósito de atingir todas as crianças de um país devastado pela
segunda guerra mundial, que necessitava resgatar seu sentido pátrio
(FONTERRADA, 2008), criando uma abordagem que seria, posteriormente, replicada
por outros educadores em diferentes culturas.
Aqui no Brasil, durante as décadas de
40 e 50, imbuído pelo mesmo sentimento, depois de viagens para a Europa e ter
conhecido a proposta de Kodály, é implantado o Canto Orfeônico com a iniciativa
do visionário compositor brasileiro, Villa-Lobos. A prática trouxe as
importantes e semelhantes características que Kodály desenvolveu: repertório de
canções folclóricas, ensino da música com ênfase ao canto coral, democratização
ao acesso a arte e o uso de gestual para o solfejo, o manossolfa (FONTERRADA,
2008, p. 213). Villa-Lobos tinha um pensamento bastante humanista acerca do
assunto como podemos ver no texto abaixo:
O canto coletivo, com seu poder de
socialização, predispõe o indivíduo a perder no momento necessário a noção egoísta da individualidade excessiva, integrando-o na
comunidade, valorizando no seu espírito a idéia da necessidade de renúncia e da disciplina ante os
imperativos da coletividade social, favorecendo, em suma, essa noção de solidariedade humana, que requer da criatura uma participação anônima na construção das grandes nacionalidades. [...] O
canto orfeônico é uma das mais altas cristalizações e o verdadeiro apanágio da música, porque, com seu enorme poder de
coesão, criando um poderoso organismo
coletivo, ele integra o indivíduo no patrimônio social da Pátria (VILLA-LOBOS,
apud FUCCI AMATO, 2007, p. 82).
Em seu pensamento é presente a ideia
de um ensino musical que valoriza o aspecto humano, quando diz que o canto
orfeônico é um privilégio da música, dada sua função de integração, sentido
pátrio e altero quando traz a expressão “organismo coletivo”. Contudo, com a
LDB de 1961, quando a música passa a ser disciplina optativa, o Canto
Orfeônico, foi substituído aos poucos pelo ensino artístico polivalente (LIMA,
2016, p.19). Paulatinamente o canto coral foi perdendo seu espaço na educação
básica, preservando-se a partir de esforços individuais, de grupos comunitários
e religiosos em espaços extracurriculares ou informais.
A fim de contextualizar a situação
atual da educação básica e sua atuação no ensino musical, cabe aqui ressaltar
a importância e influência da gestão do
currículo nas diversas mudanças da Lei de Diretrizes e Bases brasileira. Nas
últimas décadas a lei propôs a polivalência nas artes; o retorno da música como
disciplina obrigatória e, atualmente, sua proposta é que a música constitua
umas das linguagens do ensino de arte, sem reger obrigatoriedade (BRASIL, Lei n. 13.415/2017, art.26, parágrafo 2). Sendo
assim, compromete-se
o espaço do ensino musical nesse contexto, desencadeando questionamentos acerca
da efetividade das licenciaturas em música que temos atualmente.
No entanto, mesmo diante deste paradigma,
pouco favorável ao ensino musica, nos meios educacionais formais o canto
coletivo persiste e é presente como demonstra os trabalhos de autores
(CHIARELLI; FIGUEIREDO, 2010; CLEMENTE; FIGUEIREDO, 2014; SILVA; FIGUEIREDO,
2015) que realizaram a catalogação dos artigos acerca do assunto em anais de
encontros regionais e congressos da ABEM e da ANPPOM e tese e dissertações no
portal da CAPES, percorrendo os anos de 1992 a 2013.
Na catalogação de Figueiredo e Silva (2015),
sobre os trabalhos da ABEM e ANPPOM, entre 2003-2013, identificaram doze
categorias ao todo entre os temas tratados em cada artigo. Uma das categorias
criadas foi “Práticas corais em ambiente escolar”, seja curricular ou
extracurricular, que geralmente são apresentados através de relato de
experiência. No entanto, oferece categorias de diferentes naturezas, desde as
mais técnicas como “preparação vocal” até
seu aspecto funcional na categoria “inclusão social”. Os resultados da pesquisa demosntraram que menos de 4% de todo
material pesquisado referia-se ao assunto e aproximadamente 1% tratava
especificamente de “Prática corais em ambiente escolar”. Mesmo assim,
os autores demonstraram otimismo em relação aos números, dada a abrangência e
diversidade de temas que a música pode alcançar e considerando significativa a
quantidade de trabalhos encontrados.
Minunciosamente dividida em diversas
categorias, uma outra pesquisa realizada por Clemente e Figueiredo (2014) coloca
“coral escolar” como uma das quatro subcategorias de “prática escolar em contextos
específicos” e identifica cinco, de oitenta e oito teses ou dissertações, escritas
entre 1994 a 2011 no portal da CAPES, ocupando um pouco mais que 0,5% das
pesquisas, um número pouco expressivo. Entretanto, demonstra a diversidade de
temas que a prática coral pode abranger nas categorias identificadas.
Alcança-se aqui um universo que deve
continuar a ser explorado no espaço acadêmico: a prática coral no currículo da
educação básica, que mesmo parecendo evidente e efetiva sua presença neste
ambiente como prática musical (FIGUEIREDO; SILVA, 2015), ainda não tem
significativa representação nos trabalhos acadêmicos de ensino musical.
Sendo assim, é preciso de cautela para
discutir-se sobre sua efetividade e sua função sobre o desenvolvimento humano
na educação básica e deve ser constante tema de discussão e exercício. Torna-se
clara a necessidade de escrever mais sobre o assunto, seja trazendo relatos de experiências,
novas abordagens pedagógico-musicais ou mesmo discutindo sobre sua importância
para o ensino musical na contemporaneidade no espaço escolar formal.
As
dimensões da Prática Coral na Educação Básica
Partindo do pressuposto que desenvolvimento
humano é oferecer condições e espaço pleno de aprendizagem, para ampliação de
suas capacidades, autonomia e oportunidade de escolha (PNUD) é que se propõe
algumas das dimensões que são descritas á seguir.
Na dimensão técnica destaca-se o
desenvolvimento vocal, a partir dos vocalizes e aquecimentos vocais; a
consciência corporal, que oferecerá a oportunidade de uma aprendizagem
significativa sobre a fisiologia vocal, bem como da postura e relaxamento do
corpo e a compreensão da linguagem musical, no reconhecimento da escrita e
todos os elementos que pode ser usado para o seu registro, seja ela convencional
ou contemporânea.
Na dimensão estética, ressalta-se a
percepção sobre os aspectos interpretativos, em fraseados e dinâmicas,
explorando também o estilo. Na educação básica o destaque feito a essa dimensão
e seu trabalho é igualmente importante como todos os outros, dada seu caráter
intrinsecamente artístico, onde tem-se a oportunidade de aproximação do indivíduo
em fase de formação, constituindo o conhecimento musical (percepção e iniciação
à apreciação musical) na construção de critérios estético em sua relação com a
música.
Na dimensão cultural apresenta-se repertórios
de diversas culturas, podendo-se nutrir o espaço multi e intercultural que é
relevante para o exercício de todas as outras dimensões, aproximando-se realidades
diferentes, ou até mesmo opostas; desenvolvendo-se mecanismos cognitivos a
respeito da fala e da acuidade sonora e ampliando-se o conhecimento
sócio-histórico. MORAES (2008, p.185), defende o importante papel do espaço
intercultural no currículo, representando o lugar que promove o diálogo e o
respeito á diferentes culturas.
Na dimensão educacional, conta-se com a
predisposição do educador musical no exercício da escuta, da alteridade e dar espaço
para atendimento às demandas que se observa em sala de aula como, por exemplo a
inclusão social; a motivação em contraposição a apatia, muito comum no meio
escolar; a valorização da iniciativa; desafios intra e interpessoais, entre outros.
Em suma, diante das dimensões propostas, configura-se
sua abrangência de atuação na educação básica em prol do desenvolvimento, como
mostra a Figura 1:
Figura 1. Esquema explicativo das dimensões da prática coral na
educação básica.
Disciplinaridade,
Pluridisciplinaridade, Interdisciplinaridade e Transdisciplinaridade
A abordagem que se trabalha na prática
coral da educação básica, muitas vezes obedece a proposta pedagógica de uma determinada
instituição. Contudo, cabe ao educador musical, responsável pelo
desenvolvimento deste trabalho, preparado e bem fundamentado, conduzir uma
orientação pedagógica que derrube suas paredes epistemiológicas, caso seja
necessário, em prol do ser humano.
A predominância do pensamento cartesiano
atual, reponsável pela estrutura de se pensar o conhecimento a partir da
categorização, caracterizado pela “fragmentação, descontextualização,
simplificação, redução, objetivismo e dualismo” (SANTOS, 2005, p. 1), tem sido
questionado a medida que a evolução científica e tecnológica vislumbra
necessidades de transformação na maneira de pensar, agir e se relacionar com o
mundo e com o outro.
Edgar Morin, sociólogo francês, afirma a
complexidade do ser humano refletido na sua constituição, que toma dimensões
das mais diversas naturezas, seja física, psíquica, biológica, emocional ou
histórica, sem divisão ou hierarquia, visto que somos todos em um. Essa
complexidade também é a proposta que o sociólogo faz á comunidade científica
para sua mudança de paradigma em relação ao pensamento e ao conhecimento que
deve ser contextualizado para sua verdadeira efetividade, já que “conhecer o
ser humano não é separá-lo do Universo, mas situá-lo nele” (2003, p. 37)
Para “reformar o pensamento” e chegar á
complexidade, “união entre a unidade e a multiplicidade”, como propõe MORIN (2000,
p. 38), se faz nescessário reconhecer os diversos níveis de atuação em que
podemos transitar desde o nível disciplinar até o transdisciplinar, que
diferenciam-se em seus graus de complexidade, sem que sejam excludentes.
O pensamento cartesiano, ou “pensamento
clássico” para NICOLESCU (1999, p. 53), foi responsável por proporcionar uma demasiada
proliferação de disciplinas, compartimentando cada parte do todo, imunizando
seu contexto. Para que as áreas compartimentadas possam voltar a dialogar é que
surgem outros níveis disciplinares, como a pluridisciplinaridade, que é um
estudo feito por diferentes disciplinas sobre um mesmo objeto. Diferente dela
está a interdisciplinaridade, que pode ser expilicado como um estudo de
determinado objeto adotando o método de outra disciplina, tranferindo os
métodos de uma para outra. E por fim, mas igualmente importante, está a
transdisciplinaridade, que não despreza nenhuma das anteriores, mas as
complementa naquilo que há entre, além e através das disciplinas. Seu objetivo
firma-se em compreender o mundo atual e suas demandas de diferentes âmbitos é a
“unidade de conhecimento”, sendo a “disciplinaridade, a pluridisciplinaridade,
a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade quatro flechas de um único e
mesmo arco: o conhecimento” (NICOLESCU, 1999, p. 53).
Dessa forma, alguns desses tipos de
abordagens na prática coral podem ser entendidos se tomarmos como exemplo o
conteúdo/compartimento ‘compreensão da linguagem musical’, que pode ter uma
abordagem pluridisciplinar se trabalhada como tema num projeto entre música,
história e matemática. Pode-se com o mesmo conteúdo estender para uma abordagem
interdisciplinar num estudo sobre a divisão rítmica ou da origem da escala
musical e até mesmo redirecionar o tema de aprendizagem, se considerada a
demanda ‘extra-compartimento’, que se encontrará no caminho para este
conhecimento numa abordagem transdiciplinar. No entanto, nessa última, é
preciso um olhar multidimensional, já que a transdisciplinaridade é confundida
constantemente com a interdisciplinaridade e com a pluridisciplinaridade. Muitos
até descartam a disciplinaridade nessa perspectiva, sem se darem conta de que todas
elas complementam-se.
A
perspectiva transdisciplinar tratada aqui fundamenta-se no trabalho de Nicolescu
(1999), tendo como pilares vários níveis
de realidade (relação do todo e suas partes, a multidimensionalidade), a lógica do terceiro termo incluído
(sistema aberto que traz a possibilidade de diferentes pontos de vista) e a complexidade (interdependência entre
ciência e cultura).
Deve-se lembrar que tanto para Morin (2000)
quanto para Nicolescu (1999), todo o conhecimento sobre as partes deve oferecer
maior compreensão do todo, sendo a recíproca também verdadeira e quem deve se
favorecer com isso é a humanidade, o humano que há no indivíduo. Em linhas
gerais, a abordagem transdiciplinar firma-se no desenvolvimento integral
humano.
Uma abordagem
transdiciplinar na Prática Coral em prol do desenvolvimento humano
Na prática coral uma abordagem
transdisciplinar pode emergir tanto do desejo em transformar a prática docente,
redimensionando-a para acolher ás demandas interpessoais ou intrapessoais que
entremeiam a relação educador/aluno ou mesmo para posicionar o ensino musical,
como agente de transformação humana.
A atitude
transdisciplinar, defendida por Nicolescu (1999), é a composição de três importantes
traços: rigor, abertura e tolerância. O rigor
caracteriza-se pelo aprofundamento do rigor científico, dada a relevância que
se dá ao ser humano e sua relação com o objeto. A abertura é admissão do desconhecido, do inesperado e do
imprevisível no espaço ensino-aprendizagem, sendo a tolerância a consideração de que as verdades não serão absolutas,
tampouco as ideias consensuais.
Toma-se como exemplo, a partir da
experiência da autora, um grupo de alunos da rede privada, na faixa etária de 7
a 8 anos, do 3°ano do ensino fundamental 1, onde foi desenvolvida a prática
coral como conteúdo do ensino musical curricular nessa instituição, sendo ministrado
uma vez por semana por 50 minutos, no período de 4 meses, com o objetivo de
atingir as dimensões aqui propostas.
O grupo contou com 26 alunos, três
desses alunos eram inclusão, diagnosticados com TDAH (transtorno do défict de
atenção com hiperatividade) sob uso de medicação controlada, sendo um deles em
estado de deficiência mental em grau leve (borderline). Apesar disso os alunos
de inclusão não ofereceram grandes desafios, o desafio maior era o atitudinal
de todo o grupo, centrado nas relações interpessoais e na percepção do espaço
de ensino-aprendizagem, refletindo-se na afinação vocal dos alunos.
Neste contexto é que se revelou a
prática coral veículo de superação aos desafios descritos acima, garantindo
satisfação na prática musical escolar, reposicionando os indivíduos em seus
espaços em favor do todo, dando-lhes a proporção de suas ações e de sua importância
na edificação desse processo.
A construção desse trabalho se
estabeleceu a medida que foram exigidas mudanças na orientação
pedagógico-musical diante das tentativas de desenvolver a prática coral de
maneira convencional, com os aquecimentos vocais, explicações sobre o
funcionamento do aparelho vocal, exercícios de relaxamento, ensaio de
repertório, entre outros que foram ressignificados durante esse curso.
Os aquecimentos vocais tornaram-se o
ponto de partida não só para as explicações sobre fisiologia, desenvolvimento e
afinação vocal e, mas o momento onde se estabelecia a escuta, a concentração, a
interação e percepção inter e intrapessoal. Exercícios vocais em graus
conjuntos até a terça ou quinta nota da escala ou arpejos, eram feitos em bocca chiusa, com vibração lingual ou
labial, com a vogal u trazendo também
o uso indiscriminado de textos, que eram sugeridos pelos alunos, motivando-os
para esse tipo de atividade e estabelecendo a oportunidade de parceria no
processo. O reposicionamento dos alunos segundo o timbre de cada um, como técnica
de timbragem vocal para melhor afinação, também era realizado neste momento e o
canto em uníssono, foi privilegiado antes da introdução de peças a duas ou três
(SILANTIEN, 1999, p.91).
Devido as aulas serem logo após do
horário de lanche, variavelmente, foi preciso criar alguns jogos de
concentração e sensibilização da escuta no espaço da sala de aula antes que se
começasse qualquer atividade. Muitos dos jogos propostos tiveram como fundamento
os exercícios que Schafer (1991) desenvolveu em seu trabalho descrito no
capítulo O compositor em sala de aula, de
seu livro O ouvido pensante e no
trabalho de Koellreutter (2001), como pode-se ver a seguir:
1. Com os olhos fechados um
aluno de cada vez era guiado pelo som da voz de um outro aluno. O grupo deveria
ficar em pé, espalhado pela sala e em silêncio, apenas uma pessoa poderia
falar, o conductor.
2. Andar pelo espaço no andamento que a professor
cantar e mudar de direção conforme mudança de tom da melodia cantada.
3. Ouvir todos os sons que conseguir perceber, em
silêncio, ao final de um minute.
4. Em roda um de cada vez entoa um som e
‘entrega’, simbolicamente, ao outro, que seguirá cantando a mesma coisa e
depois ‘entregará’ ao próximo.
Posterior á estes exercícios seguia-se
a atividade vocal que nos dois primeiros meses ocupou grande parte das aulas
sendo substituído aos poucos pelo construção do repertório com peças em
uníssono, cânones e quolibets.
As atividades de aquecimento e
concentração representaram um campo potencial de desenvolvimento para uma
demanda aflitiva no grupo: sua falta de escuta, determinante para o diálogo em
um trabalho com este tipo de abordagem.
A medida que o repertório foi
apresentado o grupo, mais seguro de sua voz, foi ganhando cuidado e
comprometimento, refletindo-se em sua escuta, na consciência corporal e
relacionando-se de maneira mais respeitosa com o outro e com o espaço de ensino–aprendizagem.
Cabe ressaltar, que todo grupo dispunha-se
para a prática coral, tinham satisfação nas atividades que se propôs e que
tendo como um dos desafios a emissão da voz e a escuta entre eles, se tornou
essencial a vivência das atividades descritas em detrimento da construção e
elaboração artística do repertório e da elaboração mais refinada da sonoridade
do grupo.
Dessa forma, os desafios relacionados
á emissão e, por consequência, afinação vocal, tinham ligação direta com os
desafios inter e intrapessoais se tornando parâmetro para desenvolvimento de
todas as outras dimensões propostas. O Prof. Dr. Fabio Miguel, em sua tese
sobre a voz como símbolo sonoro, exemplifica bem essa situação quando discorre
sobre os gritos de uma determinada tribo como arma para suas lutas por terras
ou liberdade:
Têm-se, nesse âmbito,
representações sociais da voz relacionadas à dor, à batalha, ao pesar, à
tristeza. Certamente os significados da voz não estão relacionados à doçura,
ternura, delicadeza, mas sim ao medo, à raiva, à morte, aos sentimentos, às
sensações e emoções que foram despertadas por uma situaçnao que buscava na voz
um meio de expressão, uma forma de manifestar os pensamentos, as ideias acerca
do momento de luta e conflitos vivido. Ou seja, os aspectos simbólicos e as
representações sociais da voz são dinâmicos e diferem de uma cultura para a
outra; modificam-se de acordo com a s relações sociais, econômicas, culturais,
psicológicas específicas do lugar em que são criados e disseminados (2012, p.
127).
Ouvir o outro durante todos os
exercícios propostos fez emergir uma reflexão sobre a multidimensionalidade da
escuta, confirmando que o ensino musical precisa oferecer abertura, mantendo o rigor para
a efetividade da comunicação entre os indivíduos e as áreas de conhecimento e tolerância para convivência entre as diferentes
realidades que serão encontradas.
A construção da escuta no grupo, na
resolução dos desafios atitudinais, inter e intrapessoais, definindo o diálogo
no espaço pedagógico, foi feito através da sua relação com a música polifônica.
Diálogo e polifonia foram postos lado a lado salvo sua efetividade na
comunicação verbal. Assim diante do entendimente da emissão da voz e do que ela
é capaz de oferecer; diante da observação sobre estrutura de uma peça á duas
vozes, como um quolibet; diante da contundente necessidade de escutar o outro
na prática coral; diante do espelhamento proposto entre a música coral e
diálogo é que se deu uma prática musical transdiciplinar.
Considerações finais
Pode-se considerar que na medida que
a prática coral é incluída como um dos recursos facilitadores para o ensino
musical na educação básica, observa-se o atendimento às necessidades multidimensionais
do desenvolvimento humano: técnica, estética, cultural, educacional, e outras
tantas, diante da aliança entre o espaço de ensino-aprendizagem, a escuta e o
partilhamento da vivência musical.
O processo experimentado pela a autora além
de modificar a identidade do grupo, remodelando suas relações e revelando a
identidade dos alunos através da voz, que pouco eram ouvidos, refletiu também em
trnasformações de sua prática docente, devido a recorrida necessidade de
adaptação a uma realidade, que urgia por uma escuta crítica. O educador esteve em
muitas fases desse processo como aluno, a fim de compreender o que, por que,
como e onde alcançar o que não estava ainda posto, o que estava além ou entre, atravessado no caminho que precisava ser partilhado e
descoberto, a voz e a escuta dos alunos.
Essa perspectiva que se dá à prática coral
é inerente à abordagem que valorize o desenvolvimento integral humano no ensino
musical. FONTERRADA (2008), educadora que desenvolve um importante trabalho com
o uso da voz e do corpo e em seu livro De
tramas e fios: um ensaio sobre música e educação, tem posicionamento
semelhante a respeito:
(…) a educação musical
não é apenas uma atividade destinada a divertir e entreter as pessoas, tampouco
um conjunto de técnicas, métodos e atividades com o propósito de desenvolver
habilidades de criar competências, embora essa seja uma importante parte de sua
tarefa. O mais significativo na educação musical é que ela pode ser o espaço de
inserção da arte na vida do ser humano, dando-lhe a possibilidade de atingir
outras dimensões de si mesmo e de ampliar e aprofundar seus modos de relação
consigo próprio, com o outro e com o mundo. Essa é a real função da arte e
deveria estar na base de toda proposta de educação musical (p. 117).
E assim, mesmo que o ensino musical na
educação básica não seja uma disciplina obrigatória e que a prática coral,
sendo um ferramenta democrática, com livre acesso em diferentes meios, ainda
seja refutada como tal, é preciso persistir em sua permanência na educação
básica preponderando sua relevância no desenvolvimento humano.
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