Voz e Corpo

A Prática Coral na Educação Básica: uma abordagem transdiciplinar em prol do desenvolvimento humano



Um breve panorama da Prática Coral no Brasil

A facilidade ao acesso, o baixo custo em sua operacionalidade, seu alcance á vários meios sociais, culturais e econômicos, colocaram o canto coletivo num patamar de ‘prática democrática’. Corroborando esta ideia, toma-se como exemplo o educador musical húngaro, Kodály, que ao final de longas pesquisas acerca da música folclórica em busca da identidade nacional, deu ênfase ao canto coral, em implantação desse repertório e para instituir a música nas escolas de educação básica, com o propósito de atingir todas as crianças de um país devastado pela segunda guerra mundial, que necessitava resgatar seu sentido pátrio (FONTERRADA, 2008), criando uma abordagem que seria, posteriormente, replicada por outros educadores em diferentes culturas.
Aqui no Brasil, durante as décadas de 40 e 50, imbuído pelo mesmo sentimento, depois de viagens para a Europa e ter conhecido a proposta de Kodály, é implantado o Canto Orfeônico com a iniciativa do visionário compositor brasileiro, Villa-Lobos. A prática trouxe as importantes e semelhantes características que Kodály desenvolveu: repertório de canções folclóricas, ensino da música com ênfase ao canto coral, democratização ao acesso a arte e o uso de gestual para o solfejo, o manossolfa (FONTERRADA, 2008, p. 213). Villa-Lobos tinha um pensamento bastante humanista acerca do assunto como podemos ver no texto abaixo:

O canto coletivo, com seu poder de socialização, predispõe o indivíduo a perder no momento necessário a noção egoísta da individualidade excessiva, integrando-o na comunidade, valorizando no seu espírito a idéia da necessidade de renúncia e da disciplina ante os imperativos da coletividade social, favorecendo, em suma, essa noção de solidariedade humana, que requer da criatura uma participação anônima na construção das grandes nacionalidades. [...] O canto orfeônico é uma das mais altas cristalizações e o verdadeiro apanágio da música, porque, com seu enorme poder de coesão, criando um poderoso organismo coletivo, ele integra o indivíduo no patrimônio social da Pátria (VILLA-LOBOS, apud FUCCI AMATO, 2007, p. 82).

Em seu pensamento é presente a ideia de um ensino musical que valoriza o aspecto humano, quando diz que o canto orfeônico é um privilégio da música, dada sua função de integração, sentido pátrio e altero quando traz a expressão “organismo coletivo”. Contudo, com a LDB de 1961, quando a música passa a ser disciplina optativa, o Canto Orfeônico, foi substituído aos poucos pelo ensino artístico polivalente (LIMA, 2016, p.19). Paulatinamente o canto coral foi perdendo seu espaço na educação básica, preservando-se a partir de esforços individuais, de grupos comunitários e religiosos em espaços extracurriculares ou informais.
A fim de contextualizar a situação atual da educação básica e sua atuação no ensino musical, cabe aqui ressaltar a  importância e influência da gestão do currículo nas diversas mudanças da Lei de Diretrizes e Bases brasileira. Nas últimas décadas a lei propôs a polivalência nas artes; o retorno da música como disciplina obrigatória e, atualmente, sua proposta é que a música constitua umas das linguagens do ensino de arte, sem reger obrigatoriedade (BRASIL, Lei n. 13.415/2017, art.26, parágrafo 2). Sendo assim, compromete-se o espaço do ensino musical nesse contexto, desencadeando questionamentos acerca da efetividade das licenciaturas em música que temos atualmente.
No entanto, mesmo diante deste paradigma, pouco favorável ao ensino musica, nos meios educacionais formais o canto coletivo persiste e é presente como demonstra os trabalhos de autores (CHIARELLI; FIGUEIREDO, 2010; CLEMENTE; FIGUEIREDO, 2014; SILVA; FIGUEIREDO, 2015) que realizaram a catalogação dos artigos acerca do assunto em anais de encontros regionais e congressos da ABEM e da ANPPOM e tese e dissertações no portal da CAPES, percorrendo os anos de 1992 a 2013.
Na catalogação de Figueiredo e Silva (2015), sobre os trabalhos da ABEM e ANPPOM, entre 2003-2013, identificaram doze categorias ao todo entre os temas tratados em cada artigo. Uma das categorias criadas foi “Práticas corais em ambiente escolar”, seja curricular ou extracurricular, que geralmente são apresentados através de relato de experiência. No entanto, oferece categorias de diferentes naturezas, desde as mais técnicas como “preparação vocal” até seu aspecto funcional na categoria “inclusão social”. Os resultados da pesquisa demosntraram que menos de 4% de todo material pesquisado referia-se ao assunto e aproximadamente 1% tratava especificamente de “Prática corais em ambiente escolar”. Mesmo assim, os autores demonstraram otimismo em relação aos números, dada a abrangência e diversidade de temas que a música pode alcançar e considerando significativa a quantidade de trabalhos encontrados.
Minunciosamente dividida em diversas categorias, uma outra pesquisa realizada por Clemente e Figueiredo (2014) coloca “coral escolar” como uma das quatro subcategorias de “prática escolar em contextos específicos” e identifica cinco, de oitenta e oito teses ou dissertações, escritas entre 1994 a 2011 no portal da CAPES, ocupando um pouco mais que 0,5% das pesquisas, um número pouco expressivo. Entretanto, demonstra a diversidade de temas que a prática coral pode abranger nas categorias identificadas.
Alcança-se aqui um universo que deve continuar a ser explorado no espaço acadêmico: a prática coral no currículo da educação básica, que mesmo parecendo evidente e efetiva sua presença neste ambiente como prática musical (FIGUEIREDO; SILVA, 2015), ainda não tem significativa representação nos trabalhos acadêmicos de ensino musical.
Sendo assim, é preciso de cautela para discutir-se sobre sua efetividade e sua função sobre o desenvolvimento humano na educação básica e deve ser constante tema de discussão e exercício. Torna-se clara a necessidade de escrever mais sobre o assunto, seja trazendo relatos de experiências, novas abordagens pedagógico-musicais ou mesmo discutindo sobre sua importância para o ensino musical na contemporaneidade no espaço escolar formal.

As dimensões da Prática Coral na Educação Básica

Partindo do pressuposto que desenvolvimento humano é oferecer condições e espaço pleno de aprendizagem, para ampliação de suas capacidades, autonomia e oportunidade de escolha (PNUD) é que se propõe algumas das dimensões que são descritas á seguir.
Na dimensão técnica destaca-se o desenvolvimento vocal, a partir dos vocalizes e aquecimentos vocais; a consciência corporal, que oferecerá a oportunidade de uma aprendizagem significativa sobre a fisiologia vocal, bem como da postura e relaxamento do corpo e a compreensão da linguagem musical, no reconhecimento da escrita e todos os elementos que pode ser usado para o seu registro, seja ela convencional ou contemporânea.
Na dimensão estética, ressalta-se a percepção sobre os aspectos interpretativos, em fraseados e dinâmicas, explorando também o estilo. Na educação básica o destaque feito a essa dimensão e seu trabalho é igualmente importante como todos os outros, dada seu caráter intrinsecamente artístico, onde tem-se a oportunidade de aproximação do indivíduo em fase de formação, constituindo o conhecimento musical (percepção e iniciação à apreciação musical) na construção de critérios estético em sua relação com a música.
Na dimensão cultural apresenta-se repertórios de diversas culturas, podendo-se nutrir o espaço multi e intercultural que é relevante para o exercício de todas as outras dimensões, aproximando-se realidades diferentes, ou até mesmo opostas; desenvolvendo-se mecanismos cognitivos a respeito da fala e da acuidade sonora e ampliando-se o conhecimento sócio-histórico. MORAES (2008, p.185), defende o importante papel do espaço intercultural no currículo, representando o lugar que promove o diálogo e o respeito á diferentes culturas.
Na dimensão educacional, conta-se com a predisposição do educador musical no exercício da escuta, da alteridade e dar espaço para atendimento às demandas que se observa em sala de aula como, por exemplo a inclusão social; a motivação em contraposição a apatia, muito comum no meio escolar; a valorização da iniciativa; desafios intra e interpessoais, entre outros.
Em suma, diante das dimensões propostas, configura-se sua abrangência de atuação na educação básica em prol do desenvolvimento, como mostra a Figura 1:

Figura 1. Esquema explicativo das dimensões da prática coral na educação básica.

Disciplinaridade, Pluridisciplinaridade, Interdisciplinaridade e Transdisciplinaridade

A abordagem que se trabalha na prática coral da educação básica, muitas vezes obedece a proposta pedagógica de uma determinada instituição. Contudo, cabe ao educador musical, responsável pelo desenvolvimento deste trabalho, preparado e bem fundamentado, conduzir uma orientação pedagógica que derrube suas paredes epistemiológicas, caso seja necessário, em prol do ser humano.
A predominância do pensamento cartesiano atual, reponsável pela estrutura de se pensar o conhecimento a partir da categorização, caracterizado pela “fragmentação, descontextualização, simplificação, redução, objetivismo e dualismo” (SANTOS, 2005, p. 1), tem sido questionado a medida que a evolução científica e tecnológica vislumbra necessidades de transformação na maneira de pensar, agir e se relacionar com o mundo e com o outro.
Edgar Morin, sociólogo francês, afirma a complexidade do ser humano refletido na sua constituição, que toma dimensões das mais diversas naturezas, seja física, psíquica, biológica, emocional ou histórica, sem divisão ou hierarquia, visto que somos todos em um. Essa complexidade também é a proposta que o sociólogo faz á comunidade científica para sua mudança de paradigma em relação ao pensamento e ao conhecimento que deve ser contextualizado para sua verdadeira efetividade, já que “conhecer o ser humano não é separá-lo do Universo, mas situá-lo nele” (2003, p. 37)
Para “reformar o pensamento” e chegar á complexidade, “união entre a unidade e a multiplicidade”, como propõe MORIN (2000, p. 38), se faz nescessário reconhecer os diversos níveis de atuação em que podemos transitar desde o nível disciplinar até o transdisciplinar, que diferenciam-se em seus graus de complexidade, sem que sejam excludentes.
O pensamento cartesiano, ou “pensamento clássico” para NICOLESCU (1999, p. 53), foi responsável por proporcionar uma demasiada proliferação de disciplinas, compartimentando cada parte do todo, imunizando seu contexto. Para que as áreas compartimentadas possam voltar a dialogar é que surgem outros níveis disciplinares, como a pluridisciplinaridade, que é um estudo feito por diferentes disciplinas sobre um mesmo objeto. Diferente dela está a interdisciplinaridade, que pode ser expilicado como um estudo de determinado objeto adotando o método de outra disciplina, tranferindo os métodos de uma para outra. E por fim, mas igualmente importante, está a transdisciplinaridade, que não despreza nenhuma das anteriores, mas as complementa naquilo que há entre, além e através das disciplinas. Seu objetivo firma-se em compreender o mundo atual e suas demandas de diferentes âmbitos é a “unidade de conhecimento”, sendo a “disciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade quatro flechas de um único e mesmo arco: o conhecimento” (NICOLESCU, 1999, p. 53).
Dessa forma, alguns desses tipos de abordagens na prática coral podem ser entendidos se tomarmos como exemplo o conteúdo/compartimento ‘compreensão da linguagem musical’, que pode ter uma abordagem pluridisciplinar se trabalhada como tema num projeto entre música, história e matemática. Pode-se com o mesmo conteúdo estender para uma abordagem interdisciplinar num estudo sobre a divisão rítmica ou da origem da escala musical e até mesmo redirecionar o tema de aprendizagem, se considerada a demanda ‘extra-compartimento’, que se encontrará no caminho para este conhecimento numa abordagem transdiciplinar. No entanto, nessa última, é preciso um olhar multidimensional, já que a transdisciplinaridade é confundida constantemente com a interdisciplinaridade e com a pluridisciplinaridade. Muitos até descartam a disciplinaridade nessa perspectiva, sem se darem conta de que todas elas complementam-se.
 A perspectiva transdisciplinar tratada aqui fundamenta-se no trabalho de Nicolescu (1999), tendo como pilares vários níveis de realidade (relação do todo e suas partes, a multidimensionalidade), a lógica do terceiro termo incluído (sistema aberto que traz a possibilidade de diferentes pontos de vista) e a complexidade (interdependência entre ciência e cultura).
Deve-se lembrar que tanto para Morin (2000) quanto para Nicolescu (1999), todo o conhecimento sobre as partes deve oferecer maior compreensão do todo, sendo a recíproca também verdadeira e quem deve se favorecer com isso é a humanidade, o humano que há no indivíduo. Em linhas gerais, a abordagem transdiciplinar firma-se no desenvolvimento integral humano.

Uma abordagem transdiciplinar na Prática Coral em prol do desenvolvimento humano

Na prática coral uma abordagem transdisciplinar pode emergir tanto do desejo em transformar a prática docente, redimensionando-a para acolher ás demandas interpessoais ou intrapessoais que entremeiam a relação educador/aluno ou mesmo para posicionar o ensino musical, como agente de transformação humana.
A atitude transdisciplinar, defendida por Nicolescu (1999), é a composição de três importantes traços: rigor, abertura e tolerância. O rigor caracteriza-se pelo aprofundamento do rigor científico, dada a relevância que se dá ao ser humano e sua relação com o objeto. A abertura é admissão do desconhecido, do inesperado e do imprevisível no espaço ensino-aprendizagem, sendo a tolerância a consideração de que as verdades não serão absolutas, tampouco as ideias consensuais.
Toma-se como exemplo, a partir da experiência da autora, um grupo de alunos da rede privada, na faixa etária de 7 a 8 anos, do 3°ano do ensino fundamental 1, onde foi desenvolvida a prática coral como conteúdo do ensino musical curricular nessa instituição, sendo ministrado uma vez por semana por 50 minutos, no período de 4 meses, com o objetivo de atingir as dimensões aqui propostas.
O grupo contou com 26 alunos, três desses alunos eram inclusão, diagnosticados com TDAH (transtorno do défict de atenção com hiperatividade) sob uso de medicação controlada, sendo um deles em estado de deficiência mental em grau leve (borderline). Apesar disso os alunos de inclusão não ofereceram grandes desafios, o desafio maior era o atitudinal de todo o grupo, centrado nas relações interpessoais e na percepção do espaço de ensino-aprendizagem, refletindo-se na afinação vocal dos alunos.
Neste contexto é que se revelou a prática coral veículo de superação aos desafios descritos acima, garantindo satisfação na prática musical escolar, reposicionando os indivíduos em seus espaços em favor do todo, dando-lhes a proporção de suas ações e de sua importância na edificação desse processo.
A construção desse trabalho se estabeleceu a medida que foram exigidas mudanças na orientação pedagógico-musical diante das tentativas de desenvolver a prática coral de maneira convencional, com os aquecimentos vocais, explicações sobre o funcionamento do aparelho vocal, exercícios de relaxamento, ensaio de repertório, entre outros que foram ressignificados durante esse curso.
Os aquecimentos vocais tornaram-se o ponto de partida não só para as explicações sobre fisiologia, desenvolvimento e afinação vocal e, mas o momento onde se estabelecia a escuta, a concentração, a interação e percepção inter e intrapessoal. Exercícios vocais em graus conjuntos até a terça ou quinta nota da escala ou arpejos, eram feitos em bocca chiusa, com vibração lingual ou labial, com a vogal u trazendo também o uso indiscriminado de textos, que eram sugeridos pelos alunos, motivando-os para esse tipo de atividade e estabelecendo a oportunidade de parceria no processo. O reposicionamento dos alunos segundo o timbre de cada um, como técnica de timbragem vocal para melhor afinação, também era realizado neste momento e o canto em uníssono, foi privilegiado antes da introdução de peças a duas ou três (SILANTIEN, 1999, p.91).
Devido as aulas serem logo após do horário de lanche, variavelmente, foi preciso criar alguns jogos de concentração e sensibilização da escuta no espaço da sala de aula antes que se começasse qualquer atividade. Muitos dos jogos propostos tiveram como fundamento os exercícios que Schafer (1991) desenvolveu em seu trabalho descrito no capítulo O compositor em sala de aula, de seu livro O ouvido pensante e no trabalho de Koellreutter (2001), como pode-se ver a seguir:
1.   Com os olhos fechados um aluno de cada vez era guiado pelo som da voz de um outro aluno. O grupo deveria ficar em pé, espalhado pela sala e em silêncio, apenas uma pessoa poderia falar, o conductor.
2.    Andar pelo espaço no andamento que a professor cantar e mudar de direção conforme mudança de tom da melodia cantada.
3.    Ouvir todos os sons que conseguir perceber, em silêncio, ao final de um minute.
4.    Em roda um de cada vez entoa um som e ‘entrega’, simbolicamente, ao outro, que seguirá cantando a mesma coisa e depois ‘entregará’ ao próximo.
Posterior á estes exercícios seguia-se a atividade vocal que nos dois primeiros meses ocupou grande parte das aulas sendo substituído aos poucos pelo construção do repertório com peças em uníssono, cânones e quolibets.
As atividades de aquecimento e concentração representaram um campo potencial de desenvolvimento para uma demanda aflitiva no grupo: sua falta de escuta, determinante para o diálogo em um trabalho com este tipo de abordagem.
A medida que o repertório foi apresentado o grupo, mais seguro de sua voz, foi ganhando cuidado e comprometimento, refletindo-se em sua escuta, na consciência corporal e relacionando-se de maneira mais respeitosa com o outro e com o espaço de ensino–aprendizagem.
Cabe ressaltar, que todo grupo dispunha-se para a prática coral, tinham satisfação nas atividades que se propôs e que tendo como um dos desafios a emissão da voz e a escuta entre eles, se tornou essencial a vivência das atividades descritas em detrimento da construção e elaboração artística do repertório e da elaboração mais refinada da sonoridade do grupo.
Dessa forma, os desafios relacionados á emissão e, por consequência, afinação vocal, tinham ligação direta com os desafios inter e intrapessoais se tornando parâmetro para desenvolvimento de todas as outras dimensões propostas. O Prof. Dr. Fabio Miguel, em sua tese sobre a voz como símbolo sonoro, exemplifica bem essa situação quando discorre sobre os gritos de uma determinada tribo como arma para suas lutas por terras ou liberdade:
Têm-se, nesse âmbito, representações sociais da voz relacionadas à dor, à batalha, ao pesar, à tristeza. Certamente os significados da voz não estão relacionados à doçura, ternura, delicadeza, mas sim ao medo, à raiva, à morte, aos sentimentos, às sensações e emoções que foram despertadas por uma situaçnao que buscava na voz um meio de expressão, uma forma de manifestar os pensamentos, as ideias acerca do momento de luta e conflitos vivido. Ou seja, os aspectos simbólicos e as representações sociais da voz são dinâmicos e diferem de uma cultura para a outra; modificam-se de acordo com a s relações sociais, econômicas, culturais, psicológicas específicas do lugar em que são criados e disseminados (2012, p. 127).
Ouvir o outro durante todos os exercícios propostos fez emergir uma reflexão sobre a multidimensionalidade da escuta, confirmando que o ensino musical precisa oferecer abertura, mantendo o rigor para a efetividade da comunicação entre os indivíduos e as áreas de conhecimento e tolerância para convivência entre as diferentes realidades que serão encontradas.
A construção da escuta no grupo, na resolução dos desafios atitudinais, inter e intrapessoais, definindo o diálogo no espaço pedagógico, foi feito através da sua relação com a música polifônica. Diálogo e polifonia foram postos lado a lado salvo sua efetividade na comunicação verbal. Assim diante do entendimente da emissão da voz e do que ela é capaz de oferecer; diante da observação sobre estrutura de uma peça á duas vozes, como um quolibet; diante da contundente necessidade de escutar o outro na prática coral; diante do espelhamento proposto entre a música coral e diálogo é que se deu uma prática musical transdiciplinar.

Considerações finais

Pode-se considerar que na medida que a prática coral é incluída como um dos recursos facilitadores para o ensino musical na educação básica, observa-se o atendimento às necessidades multidimensionais do desenvolvimento humano: técnica, estética, cultural, educacional, e outras tantas, diante da aliança entre o espaço de ensino-aprendizagem, a escuta e o partilhamento da vivência musical.
O processo experimentado pela a autora além de modificar a identidade do grupo, remodelando suas relações e revelando a identidade dos alunos através da voz, que pouco eram ouvidos, refletiu também em trnasformações de sua prática docente, devido a recorrida necessidade de adaptação a uma realidade, que urgia por uma escuta crítica. O educador esteve em muitas fases desse processo como aluno, a fim de compreender o que, por que, como e onde alcançar o que não estava ainda posto, o que estava além ou entre, atravessado no caminho que precisava ser partilhado e descoberto, a voz e a escuta dos alunos.
Essa perspectiva que se dá à prática coral é inerente à abordagem que valorize o desenvolvimento integral humano no ensino musical. FONTERRADA (2008), educadora que desenvolve um importante trabalho com o uso da voz e do corpo e em seu livro De tramas e fios: um ensaio sobre música e educação, tem posicionamento semelhante a respeito:
(…) a educação musical não é apenas uma atividade destinada a divertir e entreter as pessoas, tampouco um conjunto de técnicas, métodos e atividades com o propósito de desenvolver habilidades de criar competências, embora essa seja uma importante parte de sua tarefa. O mais significativo na educação musical é que ela pode ser o espaço de inserção da arte na vida do ser humano, dando-lhe a possibilidade de atingir outras dimensões de si mesmo e de ampliar e aprofundar seus modos de relação consigo próprio, com o outro e com o mundo. Essa é a real função da arte e deveria estar na base de toda proposta de educação musical (p. 117).

E assim, mesmo que o ensino musical na educação básica não seja uma disciplina obrigatória e que a prática coral, sendo um ferramenta democrática, com livre acesso em diferentes meios, ainda seja refutada como tal, é preciso persistir em sua permanência na educação básica preponderando sua relevância no desenvolvimento humano.

Referências

BRASIL. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: arte/ Secretria de Educação Fundamental. Brasilia: MEC/SEF, 1997. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro06.pdf> Acesso: 15 julho 2017.

BRASIL. Lei n.13.415, de 2017. Altera a Lei n. 13.278, de 2016 , para fixar a música como uma das linguagens artísticas que constitui o ensino de arte, componente curricular obrigatório. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.html> Acesso : 10 julho 2017.

BRITO, Teca de Alencar. Koellreutter educador: o humano como objetivo na educação musical. São Paulo: Peiriópolis, 2001.
____________________. Hans-Joachim Koellreutter: ideias de mundo, de música, de educação. São Paulo: Peiriópolis, 2015.

CHIARELLI, Ligia Karina Meneghetti; FIGUEIREDO, Sérgio Luiz Ferreira de. Canto coral: uma levantamento sobre os trabalhos apresentados nos Encontros Nacionais e Congressos da ABEM entre 1992 e 2009. In: XIX CONGRESSO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL. Anais. Políticas públicas em educação musical: dimensões culturais, educacionais e formativas. Goiânia, 2010, p. 551-560. Disponível em <http://abemeducacaomusical.com.br/sistemas/anais/congressos/Anais_abemcongresso_2010_parte1.pdf> Acesso: 15 julho 2017.

FIGUEIREDO, Sérgio Luiz Ferreira de; SILVA, Luiz Eduardo. Prática Coral: Um panorama das publicações de anais de encontros e congressos da ABEM e ANPPOM dos últimos dez anos (2003-2013). XXII CONGRESSO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL. Anais. Educação Musical: formação humana, ética e produção de conhecimento. Natal, 2015. Disponível em <http://abemeducacaomusical.com.br/conferencias/index.php/xxiicongresso/xxiicongresso/paper/view/1092/508> Acesso: 15 julho 2017.

FONTERRADA, Marisa Trench de Oliveira. De tramas e fios: um ensaio sobre a música e a educação. 2. ed. São Paulo: Editora UNESP; Rio de Janeiro: Funarte, 2008.

FUCCI AMATO, RITA. O canto coral como prática sócio-cultural e educativo musical. Opus. Goiânia, v. 13, n. 1, p. 75-96, 2007. Disponível em < http://www.anppom.com.br/revista/index.php/opus/article/view/295/273> Acesso: 14 julho2017.
LIMA, Sonia Regina Albano de. Música, educação e interdisciplinaridade: uma tríade em construção. São Paulo: Editora Cultura Acadêmica, 2016.
MIGUEL, Fabio. Paisagem Sonora: um estudo da voz humana como símbolo sonoro. 2012. 315f. Tese (Doutorado em Música) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP- São Paulo. Disponível em <https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/105884/miguel_f_dr_ia.pdf?sequence=1&isAllowed=y> Acesso: 16 julho 2017.

MORAES, Maria Cândida. Ecologia dos saberes: complexidade , transdisciplinaridade e educação: novos fundamentos para iluminar novas práticas educacionais. São Paulo: Antakarana/WHH- Willis Harman House, 2008.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessaries à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya; revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. 2 ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2000.
_____________. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Trad. Eloá Jacobina. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdiciplinaridade. Trad. Lucia Pereira de Souza. São Paulo: TRIOM, 1999.

PNUD. (Programa das nações unidas para o desenvolvimento no brasil). Desenvolvimento Humano e IDH. Disponível em<http://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/idh0.html>
Acesso: 18 julho 2017.

SANTOS, Akiko. O que é transdisciplinaridade. Rural Semanal. I parte e II parte. Universidade Rural do Rio de Janeiro, 2005. Disponível em<https://pedagogiaaopedaletra.com/wp-content/uploads/2013/06/O_QUE_e_TRANSDISCIPLINARIDADE.pdf≥ Acesso: 14 julho 2017.

SCHAFER, Murray. Ouvido Pensante. Trad. Marisa Trench O. Fonterrada, Magda R Gomes da Silva, Maria Lúcia Pascoal. São Paulo: Ed. UNESP, 1991.

SILANTIEN, John. Técnicas de Ensaio coral para aperfeiçoar a afinação. In: CONVENÇÃO INTERNACIONAL DE REGENTES DE COROS, 1999. Anais. Brasília, p. 91-94.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Diálogos Musicais